Coberturas
Covid-19: como a pandemia evoluiu na Região Sul de forma diferente
Especialistas defendem ação conjunta no combate à doença, com retomada econômica diferente nas regiões
Reportagem publicada no Diário Catarinense e portal NSC Total em 15/05/2020
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Embora sejam vizinhos, Santa Catarina e Rio Grande do Sul adotaram estratégias distintas no distanciamento social e no controle do avanço do coronavírus (Covid-19) no território. De igual forma, até o momento, colhem resultados diferentes. Enquanto em Santa Catarina o Estado decretou suspensão de atividades e do transporte público de maneira mais drástica cinco dias após a confirmação do primeiro caso, o vizinho mais ao sul adotou restrições apenas nove dias depois do início do surto, depois que alguns municípios tinham se adiantado por conta própria.
O transporte público, por exemplo, continuou operando com 50% da capacidade nas linhas intermunicipais e sem lotação nas municipais, comércio e restaurantes permaneceram funcionando parcialmente, com regras estabelecidas em decreto e limites de público.
Quando SC, que tem a quarta menor taxa de letalidade do país, começa a flexibilizar o funcionamento de serviços e comércio e cogita a volta do transporte público, entra em vigor nesta semana no Estado vizinho o chamado distanciamento social controlado.
Sistema de bandeiras gera controle sobre regiões
Com diferentes níveis de restrições em cada uma das 20 regiões do Estado, numa escala de bandeiras que vai do amarelo (a mais branda) ao preto (controle severo), os municípios estão submetidos a graus distintos de isolamento social e restrição do funcionamento de comércio e serviços, ajustados de acordo com a velocidade de propagação da Covid-19 e a capacidade de atendimento do sistema de saúde.
Tanto do ponto da retomada da economia quanto do controle da transmissão do vírus, especialistas ouvidos pelo NSC Total são favoráveis à adoção de medidas distintas para cada região do Estado, similar à adotada pelo RS, para controlar com mais precisão a evolução local de casos e discutir soluções pontuais. Eles também sugerem que as estratégias sejam traçadas conjuntamente entre os Estados, porque a transmissão viral adotou uma dinâmica que atravessa a divisa de Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Há mais casos em SC, mas menor letalidade
Os dados oficiais permitem fazer um paralelo de como a pandemia se comportou nos dois Estados ao longo do tempo. Ambos tiveram a confirmação dos primeiros casos e das primeiras mortes com poucos dias de diferença. Mas a expansão ocorreu de forma distinta em dois meses de surto.
Até esta terça-feira, Santa Catarina apresentava 816 casos confirmados de coronavírus a mais do que o Estado vizinho. Mas não foi sempre assim. O primeiro caso foi anunciado no Rio Grande do Sul em 10 de março, dois dias antes de SC. Desde então, o Estado vizinho apresentava mais casos diagnosticados. Até que em 10 de abril o gráfico se inverteu e SC passou a ter mais confirmações.
Após a flexibilização de parte do comércio e shoppings, no dia 22 de abril, houve um pico de novos casos, especialmente em cidades como Chapecó e Blumenau.
SC lidera no índice de casos por milhão de pessoas
Quando se olha para o índice de casos para cada 1 milhão de habitantes, no entanto, Santa Catarina lidera na Região Sul desde 21 de março. E nesta terça-feira apresentava uma incidência 521 casos para cada milhão, mais do que o dobro dos gaúchos. Se comparado ao outro vizinho, o Paraná, a diferença é de 3,13 vezes mais casos por milhão em SC.
Professor do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina, Lúcio José Botelho desconfia um pouco da precisão dos dados apresentados em ambos os Estados, por subnotificação e possível adoção de metodologia distinta. Ele atribui o número expressivo de casos nos municípios catarinenses ao fato de que mais testes foram aplicados na população.
O governo de Santa Catarina atribui o maior número ao aumento da testagem para a doença. O governo gaúcho também foi procurado, mas até a publicação desta reportagem não respondeu aos questionamentos.
SC tem menos mortes e mais leitos de UTI disponíveis
Por outro lado, Santa Catarina apresenta uma taxa de letalidade menor para a Covid-19 do que o vizinho Rio Grande do Sul na população em geral. Mas entre os pacientes de 30 a 49 anos tem mais mortes proporcionais aos casos da faixa etária do que no Estado vizinho. Novamente, na análise de Botelho, a explicação pode ser na testagem maior entre a população mais jovem.
A taxa de internação em UTIs também é distinta entre os dois Estados. No Rio Grande do Sul, até esta terça-feira, havia 127 pacientes com Covid-19 em terapia intensiva. Em SC, eram 68. Isso corresponde a 11,3% dos doentes em recuperação no Estado vizinho e apenas 2,14% em SC – cinco vezes menos.
Proporcionalmente à população, Santa Catarina ainda tem mais mortes para cada 1 milhão de habitantes: 10,2 contra 9,8 no Rio Grande do Sul. Mas a taxa de letalidade entre os casos confirmados é bem menor entre os catarinenses. Dos 3.733 diagnosticados com a Covid-19 no Estado, apenas 1,95% morreram. No RS, a taxa é de 3,8%. Até 27 de abril, Santa Catarina apresentava mais mortes no total do que o Estado vizinho. A partir de então, o Rio Grande do Sul passou à frente e mais do que duplicou o total de óbitos no período.
Características da população são razões para disparidade
Professor da Universidade Federal de Santa Maria, Rivaldo Mauro De Faria, geógrafo integrante de uma rede nacional de pesquisa sobre o avanço da Covid-19 no espaço geográfico do Brasil, acredita que um dos fatores relacionados à baixa letalidade em SC tem relação à característica da população, que também apresenta indicadores semelhantes em muitos aspectos da saúde pública, como baixa mortalidade infantil e alta expectativa de vida.
Já o governo de Santa Catarina argumenta que ter sido o primeiro Estado do país a adotar medidas de distanciamento social e a testagem mais expressiva da população anteciparam o diagnóstico e controle da doença.
Isolamento social é mais respeitado no Rio Grande do Sul
Conforme a plataforma In Loco, que utiliza dados de movimentação de celulares por satélite, tanto Santa Catarina quanto o Rio Grande do Sul tiveram o pico de isolamento social, com pouca circulação de pessoas, no dia 22 de março. Apesar de leve vantagem de SC na largada, os catarinenses relaxaram mais, especialmente com a flexibilização do isolamento a partir de 22 de abril, quando shoppings, comércios e alguns serviços voltaram a funcionar.
Segundo o dado mais recente, desta terça-feira, o índice de isolamento do Estado era de apenas 39,2%, contra 45,4% dos gaúchos. O secretário da Saúde de SC, André Motta Ribeiro, afirmou em entrevista coletiva nesta terça-feira que o dado preocupa, porque está abaixo do esperado (em torno de 50%).
Estratégias de retomada econômica e controle do surto poderiam ser pensadas conjuntamente, mesmo entre Estados diferentes, defendem especialistas
Os geógrafos e integrantes da rede nacional de Geógrafos para Saúde, que pesquisam o avanço do vírus no território brasileiro, Eduardo Werneck Ribeiro, do Instituto Federal Catarinense, e Rivaldo de Faria, da Universidade Federal de Santa Maria, alertam para a necessidade de começar a pensar estratégias conjuntas entre os estados, porque a dinâmica da transmissão do vírus já ultrapassou as divisas dos territórios. A opinião é a mesma do chefe do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina, Fabrício Augusto Menegon.
Numa análise em que consideram a aglomeração populacional, o grau de urbanização, o fluxo de pessoas entre as cidades para estudar e trabalhar e a oferta de serviços públicos, além dos casos e mortes confirmados para covid-19, Faria e Werneck mapearam circuitos em que o vírus tem se alastrado no espaço geográfico. Santa Catarina se mostrou o local com a maior densidade de casos na Região Sul, conectando-se principalmente ao Rio Grande do Sul.
Três eixos em SC representam áreas de expansão
No caso de SC, são pelo menos três eixos identificados como áreas de grande expansão do vírus: ao longo do Litoral, na região do Meio-Oeste e no Oeste.
Ocorre que essas regiões têm características distintas. No Litoral, as pessoas circulam mais no dia a dia, mas por um perímetro menor, porque as cidades são próximas, há uma densa malha viária e a BR-101 conecta todas elas. Mas a infraestrutura de saúde é mais farta.
Já no Meio-Oeste e Oeste, a característica é distinta. As pessoas circulam por distâncias maiores para trabalhar nas cidades pólo, muitas vezes em fábricas e indústrias com grande aglomeração de pessoas. Os municípios do entorno são predominantemente rurais e, se por um lado ao morar neles não há tanta aglomeração, ficam mais distantes da oferta de serviços de saúde. Caso de cidades da microrregião de Concórdia e de Chapecó, por exemplo, que têm registrado explosão de casos.
Estudo mostra densidade dos casos
Projeção feita pelos professores Werneck e Faria mostra, em vermelho, como a densidade de novos casos de coronavírus interliga Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Os círculos representam o total de casos já diagnosticados nas cidades
Werneck compara o Oeste como uma ilha, onde as pessoas têm circulação mais restrita e ampliam as chances de propagação do vírus. Já o Litoral ele compara a um continente, com grande circulação e concentração de pessoas, mas em espaços distintos ao mesmo tempo. Com isso, segundo o professor, estratégias diferentes deveriam ser adotadas para cada região.
– No Litoral, é importante reforçar o isolamento social, porque a aglomeração populacional ainda se mostra como principal vetor. Já no Oeste, controlar a mobilidade das cidades pequenas e rurais para os polos regionais e os que vêm de fora do Estado – exemplifica Werneck.
Para o pesquisador, a relação entre os municípios poderia ser aprimorada para definir estratégias conjuntas e compartilhar recursos, mesmo em estados distintos. Caso do eixo Concórdia e Chapecó, do lado catarinense, e Erechim e Passo Fundo, no território gaúcho.
– Os municípios grandes, que têm infraestrutura e atraem a circulação de pessoas pela oferta de serviços, deveriam trabalhar juntos, organizando fluxo de atendimento e controle da doença, definindo estratégias conjuntas. Poderiam fazer um pool de gestão da demanda pelos serviços de saúde – afirma.
Território de Santa Catarina é mais afetado
Do lado do Rio Grande do Sul, a concentração maior de casos sai da região metropolitana de Porto Alegre e sobe a Serra Gaúcha, até chegar na região de Passo Fundo. Ali, se conecta novamente com Santa Catarina pelas regiões de Concórdia e Chapecó. Mas há uma diferença apontada pelo professor Rivaldo de Faria: em Santa Catarina a maior parte do território já apresenta circulação do vírus, enquanto no Rio Grande do Sul as regiões do Pampa e da Fronteira estão preservadas.
Por outro lado, as desigualdades sociais são mais aparentes no lado gaúcho, aponta Faria. Assim como em regiões do Meio-Oeste de SC e o entorno de Lages, com população mais vulnerável, se o vírus chegar tende a provocar mais dano, especialmente porque também são regiões carentes em infraestrutura de saúde.
A receita, aponta o especialista, é evitar o quanto antes a expansão da doença pelo território:
– Enquanto a gente não tiver vacina, toda estratégia é geográfica. É necessário impedir que a pandemia ganhe extensão no território para manter o controle.
Modelo gaúcho é viável para retomada das atividades em Santa Catarina?
Os especialistas concordam que o chamado distanciamento controlado, adotado pelo Rio Grande do Sul nesta semana, seria promissor em Santa Catarina. As características do território catarinense mostram que o fluxo de pessoas orbita em torno das cidades pólo, com peculiaridades econômicas e sociais.
Mas o chefe do Departamento de Saúde Pública da UFSC, Fabrício Menegon, alerta para um detalhe que coloca Santa Catarina atrás na estratégia de ações para voltar à normalidade. Antes de criar o processo de distanciamento controlado, o governo do Rio Grande do Sul se amparou num estudo conduzido pela Universidade Federal de Pelotas, que fez um levantamento minucioso da base populacional do território gaúcho. Isso permitiu estimar em datas futuras as probabilidades de adotar diferentes níveis de reabertura às atividades econômicas e sociais sem correr o risco de ter novo surto.
– O Rio Grande do Sul tem uma noção melhor e muito mais próxima da realidade com base nesse estudo, que é robusto e muito bem conduzido. Os resultados estão dando segurança para o governo adotar essas medidas. Santa Catarina já perdeu muito tempo. Deveria ter investido num estudo de base populacional e de testagem em massa – critica Menegon.
Werneck e de Faria concordam que a estratégia regional tende a ser mais eficaz, porque o próprio sistema de saúde pública é desenhado para atender demandas regionais.
Governo de SC afirma já ter plano semelhante ao estado vizinho
Questionado pela reportagem da NSC, o governador Carlos Moisés da Silva afirmou na noite desta quarta-feira, 13, que o Estado já tem trabalhado com esse modelo regional de controle:
– Não é um modelo igual, temos o nosso, desenvolvemos algumas ferramentas e aplicamos ao caso concreto do nosso Estado. E o que temos construído desde 17 de março é exatamente para alcançar esse modelo que estamos chegando agora, em que flexibilizamos as atividades, mas que vamos restringi-las ou flexibilizá-las ainda mais em algumas regiões do Estado.
O governador argumentou que o planejamento faz parte de três fases: inicialmente, o isolamento social, depois a recomposição e ampliação do leitos hospitalares e, por fim, o envolvimento das regiões e municípios para identificar disparidades no atendimento à saúde e controle da pandemia e corrigi-las:
– Agora nós vamos externar então essa terceira fase, que é a fase que nós envolvemos as regiões e os municípios que destoam no mapa de Santa Catarina com condições distintas, condições desiguais.
Secretário de Saúde de SC, André Motta Ribeiro diz que o planejamento tem sido feito olhando os modelos de outros estados, incluindo o Rio Grande do Sul.
– A diferença é que RS tornou ele público, de uma forma mais didática, mas nós temos modelos tão robustos ou melhores que estão sendo utilizados e no momento adequado vão ser tornados públicos – justificou.
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