Destaques
Multimídia: Onde a luz não ilumina
Seu Miranda, Pedro, Laerte, Genésio, Sandra e as crianças moram em áreas urbanas de Blumenau e como 130 mil famílias do Brasil driblam a falta de energia elétrica com banhos de bacia, luz de vela e rádio a pilha
Onde a luz não ilumina
Seu Miranda, Pedro, Laerte, Genésio, Sandra e as crianças moram em áreas urbanas de Blumenau e como 130 mil famílias do Brasil driblam a falta de energia elétrica com banhos de bacia, luz de vela e rádio a pilha
CRISTIAN EDEL WEISS
Reportagem
LUCAS AMORELLI
Imagens
VALQUÍRIA ORTIZ
Design
ADÔNIS BASTOS
Colaboração
CLEISI SOARES
Edição
Vidas de renúncia e abdicação
Para eles, a TV empoeirada renunciou à vocação de animar. A sala de estar tornou-se sombria. O banho esfriou. A luminária da varanda rendeu-se à penumbra. E os dias tornaram-se mais breves. Tudo o que se podia esperar de uma vida de esforços era desfrutar o conforto ao final de cada jornada. Mas Seu Miranda, Laerte, Pedro, Genésio, a esposa Sandra e as cinco crianças estão excluídos sempre que o sol se põe. Em casebres de madeira ou de tijolos nus, moram onde a energia elétrica não chega, seja por faltar dinheiro para o poste particular ou por viver em área de risco.
Habitam a zona urbana de Blumenau e como 130 mil famílias brasileiras veem a cidade se acender enquanto os lares são dominados pela escuridão. Eles têm água encanada e recebem correspondências. Gente que prefere a honestidade em abdicar o conforto à facilidade da ligação clandestina. No breu, Sandra deu à luz a filha caçula. Seu Miranda dedilha teclas da sanfona até o sono chegar. Laerte ouve novela no rádio a pilha enquanto sonha com um final feliz para si. Pedro reza por uma vida melhor:
– Acho que todo ser humano gostaria de ter o básico. Como energia para ter geladeira, freezer e televisão, um passatempo que me distraia.
Pelo menos 30 casas em áreas urbanas de Blumenau padecem da falta de energia elétrica e do conforto que a luz proporciona ao ser humano
Em 2010, pelo menos 30 domicílios do meio urbano blumenauense padeciam da falta de energia elétrica, segundo o censo do IBGE. Em Santa Catarina, dos 4.455 lares desprivilegiados, mais de 2,6 mil estavam no meio urbano. Embora a maioria seja de moradias em áreas pobres, em Blumenau havia registros até no Centro. Mas os números podem ter mudado, como o destino e as trajetórias das famílias. Somente após um mês de visita aos confins da cidade foi possível encontrar os moradores. Foram pelo menos seis casas. E no caminho, lares que nem sequer estavam no registro do IBGE.
O banho de bacia, o cheiro da vela, o alento do rádio a pilhas. Há anos, eles sabem bem como é viver sem eletricidade.
Ele derrota a solidão com a felicidade de avistar pela janela da frente um paraíso: o Morro Spitzkopf, extremo Sul de Blumenau. Aprendeu a ler no roçar das nuvens sobre o pico da montanha se o dia terá sol ou chuva. Numa transversal da Rua Belmiro Colzani, no Progresso, o pedreiro Vendelino Miranda orgulha-se da casa de madeira e tijolos que ergue mansamente, aos 83 anos. No terreno comprado há oito anos, enfrentou seis invernos banhando-se com bacia e água aquecida no fogão a gás. Por seis meses, viu a casa alumiada. A vizinha de baixo ofereceu o rabicho e um italiano da cercania entendido da luz fez a ligação. Mas, um ano atrás, chegou o fiscal. A vizinha, temerosa, recuou.
São 17h30min, hora de se acolher. Seu Miranda tateia pelo cômodo onde se espremem cama, mesa, bugigangas e fogão. Calibra a lamparina a querosene e a acende para o jantar. Deleita-se com a volta de linguiça e o pirão. A geladeira branca virou dispensa do que não demanda refrigeração e as quatro televisões adormecem sobre a estante. Mas o celular está ativo, carregado na vizinhança. No rádio a pilha, canções lembram romances do passado. Desde que a companheira Matilde se foi, tem sido assim.
Ele derrota a solidão com a felicidade de avistar pela janela da frente um paraíso: o Morro Spitzkopf. A geladeira branca virou despensa do que não demanda refrigeração e as quatro televisões adormecem sobre a estante. No rádio a pilha, canções lembram romances do passado.
Para ter luz, o vizinho estendeu quase um quilômetro de fios desde a rua principal. Mas Seu Miranda não tem R$ 1,6 mil para voltar a ter energia, como tinha na roça, em Apiúna. Aprendeu a tocar sanfona de ponto com 14 anos. Aos 18, descobriu a de teclas. Hoje, tece aspirações singelas e confidencia:
– Queria energia para tocar duas gaitas amplificadas e o cavaquinho no som.
Não que a falta de eletricidade o impeça de dedilhá-los:
– É meu passatempo. Um dia talvez a gente consiga luz outra vez.
No princípio, disse Deus:
– Haja luz!
E houve. E o mundo surgira das trevas, segundo o Gênesis. No casebre 29 do Morro da Figueira, no Bairro Velha Grande, Pedro Castanha Neto, 53 anos, gostaria que a solução para seus problemas fosse simples como a ordem do Altíssimo. Homem de fé, Pedro quer a luz que lhe falta há seis anos para ler. O terreno onde vive, comprou do irmão. Mas a área está sob proteção ambiental e não pode receber energia. O sofá azul-escuro da varanda conforta o encanador desempregado nas tardes solitárias. Pedro lê a bíblia, folheia livros cristãos e aprecia biografias como as de Ayrton Senna.
Por que os outros têm? Por que eu não tenho? Será que sou bandido, pessoa discriminada? Me sinto rejeitado na sociedade
Quem caminha pela Rua Maria Pinheiro da Silva é bem-vindo para uma prosa. Vizinho da frente, Otacir Antonio Ribas, 41, traz tábuas para a lenha. Amigo há 18 anos, o viúvo, seis filhos para criar, é quem o ajuda com mantimentos, guardados em potes plásticos por não ter geladeira. Otacir por vezes lhe oferece o chuveiro elétrico. Em dias quentes, toma banho de bacia. Por mais de um ano, Pedro esticou um rabicho do vizinho Paraná, até a polícia ameaçar prendê-lo. Decidiu, então, viver às escuras.
– Por que os outros têm? Por que eu não tenho? Será que sou bandido, pessoa discriminada? Me sinto rejeitado na sociedade – revela, ao ver as janelas da vizinhança se acenderem.
A casa de 10 metros quadrados é iluminada apenas por feixes da luz do poste que atravessam as frestas de madeira. No único cômodo, cama, duas mesas improvisadas, pia, TV portátil com rádio e o fogão a lenha branco. A casa era maior, mas um incêndio consumiu o quarto. Os três filhos e a esposa o deixaram há cinco anos. Por desentendimentos familiares, Pedro levou uma paulada na cabeça, que o deixou surdo e lhe tirou a força das pernas.
Pedro Castanha Neto gostaria que a solução para seus problemas fosse simples como a ordem do Altíssimo. Ao repousar, faz uma prece. Ao Criador, pede apenas que o ilumine.
Da casa de dois andares em Palhoça, carro seminovo e uma empreiteira que dirigia, hoje vive da ajuda da comunidade. O pai mora no Morro Dona Edith. Uma das irmãs vive em Abelardo Luz. Ambos poderiam ser refúgio nos dias difíceis, mas ele resiste:
– Não dá certo. Ele não combina comigo. Ela tem muitos filhos e pode dar atrito. Aqui não incomodo ninguém.
O relógio marca 19h e Pedro quer se deitar. Ao repousar, faz uma prece. Ao Criador, pede apenas que o ilumine.
A chegada da luz ao Vale
1883
1900
1909
1915
1920
Nos anos 1960, a Força e Luz é incorporada à recém-criada Celesc
Número de casas sem luz no Brasil
728.672
Reportagem foi manchete do Santa: Vida às escuras – a dura rotina de quem mora em Blumenau sem o conforto que a eletricidade proporciona |
O lampião quebrado acima da porta é mera decoração. À noite, acende velas e prepara o chimarrão. As banquetas, uma cadeira de madeira, a cama de solteiro e mesas improvisadas se espremem no cômodo de 12 metros quadrados. No banheiro em construção, banho só de caneca e bacia. O fogão a gás aquece a água e cozinha o arroz, as verduras e a carne, comprados em porções, por faltar refrigeração.
Em seus dramas reais, descobriu que sonhar é mais edificante que a ambição do conforto moderno. Com 20 anos, queria ser humorista, mas foi barrado pela timidez.
Laerte não tem emprego fixo, mas orgulha-se do legado. Chegou a Blumenau em 1986 e edificou um dos primeiros prédios da Ponta Aguda, a sede da Caixa Econômica, o Viaduto da Via Expressa, reformou a Câmara de Vereadores e a rede de esgoto do Garcia. Os 15 anos de carteira assinada e a oitava série não lhe dão garantias e, assim, a depressão o persegue. Laerte sente falta do pai, que se foi há um ano e meio. Revisita fotografias, recorda do filho de oito anos doado a uma família italiana. Para superar a solidão, sintoniza o rádio a pilhas nas estações AM, FM e canais de TV. Fim da noite, deita-se, ouve mais um capítulo da novela e sonha com os desfechos da ficção.
Em seus dramas reais, descobriu que sonhar é mais edificante que a ambição do conforto moderno. Com 20 anos, queria ser humorista, mas foi barrado pela timidez. Guarda duas passagens compradas por R$ 1,2 mil, em 2009. Em janeiro, voou de Navegantes a São Paulo. Em novembro, foi ao Rio de Janeiro. Nas duas viagens, teve dinheiro apenas para ir ao aeroporto e retornar de imediato. Nem sequer pisou o solo das metrópoles.
– Queria voar de avião. Era um sonho. Se pudesse, queria ir para o estrangeiro, para Nova York.
Mesmo sem a definição dos problemas, traça planos. Os olhos esmeralda brilham novamente: Laerte quer conquistar uma família.
OPINIÃO
“Ter energia é ter qualidade de vida”
Quando a menina chegou, a família estava nove meses sem eletricidade. A sala do parto foi iluminada por lâmpada de emergência a bateria e velas. O corte da luz ocorreu por atrasos no pagamento das faturas. O lar da família fica entre o Morro do Aipim e a Rua Pedro Krauss Senior, no Vorstadt. Na vizinhança, a casa abaixo foi atingida por deslizamento em 2008. Desde então, vizinhos têm dificuldades para religar a energia. Precisam do aval da Defesa Civil. Há dois meses, a família juntou R$ 800 e quitou a dívida com a Celesc.
– Agora que a gente teve condições de pagar à vista, eles não estão querendo liberar porque o poste está na área de risco. Fico triste, magoada. TV, banho quente, não temos – lamenta Sandra.
Se a vida começa ao renunciar à escuridão do ventre para enfrentar as luzes do mundo, Chiara quase contradiz a lei da natureza. Quando a menina chegou, a família estava nove meses sem eletricidade. A sala do parto foi iluminada por lâmpada de emergência a bateria e velas.
Genésio é engenhoso. Fez um balanço no fundo de casa para os filhos Gensan, 13 anos, Sangen, 11, Shairy, 8, Guindairy, 3, e o Tigrão, rottweiler que guarda a casa. Sandra sai às 6h30min para o CEI Pedro Krauss, onde trabalha, com as duas caçulas. Genésio se divide em dois empregos, mas acompanha os maiores até o Colégio Pedro II. Voltam para casa às 17h45min.
Sandra acende a vela, esquenta água no fogão e dá banho nas crianças. O mais velho prepara o café no bule, pois a cafeteira, assim como o micro-ondas, a geladeira e as panelas elétricas, está aposentada. Genésio alimenta o gosto pela leitura e espalha pela casa revistas e livros. Gensan chegou a ocupar o topo da lista dos que mais emprestam livros da biblioteca da escola. Apesar das adversidades, a família segue unida a cada luz que se cintila.
– Os outros têm eletricidade, nós temos um ao outro e damos um jeitinho – finaliza Genésio.
Cidades superam o campo em moradias sem luz
Santa Catarina destoa da realidade nacional. Das quase 730 mil moradias sem eletricidade no país, 81,7% estão na zona rural, segundo o Censo 2010. Até mesmo no Rio de Janeiro e em São Paulo os moradores do campo formam a maioria desprivilegiada. No Vale do Itajaí, entre áreas urbanas e rurais, há 430 moradias no escuro, 310 nas cidades. Pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Antenor Lopes de Jesus Filho reconhece a raridade do fenômeno e analisa:
– O ser humano tem necessidade de se sentir bem. Ao iluminar a residência, pode ter mais horas de lazer. De forma geral, a inclusão energética aponta para a direção da inclusão social, econômica e integração com a sociedade.
Nas favelas cariocas, a pesquisadora do Programa de Planejamento Energético da Coppe/UFRJ, Claude Cohen, observou que devido à dificuldade de pagamento, famílias de baixa renda recorrem às ligações clandestinas:
– O principal argumento é o valor da tarifa. As pessoas se acostumaram a usar equipamentos e foram adquirindo cada vez mais. A energia elétrica é essencial. Não dá para imaginar uma inserção na área urbana sem energia.
Em Blumenau, casas sem energia ficam em ruas de placa amarela, mas número de lares no escuro pode ser maior do que o registrado pelo IBGE
Ligações clandestinas são proibidas por lei. Mas as conexões entre vizinhos – rabichos – são liberadas desde que o consumo seja regulado por medidor. Segundo o gerente regional da Celesc, Claudio Varella, a ligação é possível desde que o terreno esteja legalizado, fora de área de risco e as especificações técnicas sejam atendidas.
O número de casas sem eletricidade pode ser maior do que aponta o Censo 2010, estima o diretor de Regularização Fundiária de Blumenau, Sérgio Luiz Nunes. Residências como a de Laerte, Pedro, Seu Miranda e Genésio estão em ruas de placa amarela, irregulares ou em área de risco geológico. Nessas regiões, o Ministério Público proibiu prefeitura e Estado de fazerem ligações.
O município está recadastrando famílias que vivem em 17 áreas vulneráveis para propor projetos habitacionais e removê-las. Na última década, a União promoveu programas de acesso à energia: o Luz para Todos, para a área rural, e a Tarifa Social, que dá desconto na tarifa a famílias inscritas nos programas sociais do governo.
Assista abaixo ao curta produzido nesta reportagem:
Voltar para a Portfólio | Ir para Especiais Multimídia | Ir para Jornalismo de Dados | Voltar para a Home
-
Coberturas2 anos ago
Eleições: quanto custa cada voto recebido pelos eleitos
-
Coberturas2 anos ago
Mapa da votação: Bolsonaro foi o mais votado em 266 cidades de SC
-
Coberturas internacionais2 anos ago
Deutsche Welle: Tem parente alemão? Saiba se você tem direito à cidadania
-
Artigos5 meses ago
Eleições Europeias 2024: veja em gráficos e mapas os resultados por país
-
Coberturas internacionais2 anos ago
Deutsche Welle: Cresce número de brasileiros com cidadania alemã
-
Artigos1 ano ago
6 Dicas Valiosas para Montar um Portfólio de Jornalista de Sucesso
-
Coberturas internacionais1 ano ago
Deutsche Welle: “Plano Real foi uma cópia do modelo alemão pela metade”
-
Coberturas2 anos ago
Eleições: veja como cada bairro votou para presidente e governador no 2º turno
-
Artigos6 anos ago
BR-470: A reportagem que a Presidência da República leu e se mobilizou
-
Coberturas2 anos ago
Eleições: o que as ondas Lula e Bolsonaro têm em comum
-
História6 anos ago
Histórias: A vida expressa às margens da via em Blumenau
-
Artigos6 anos ago
Caixa de Dados fica entre melhores produções do mundo em jornalismo visual de janeiro
-
Coberturas2 anos ago
Cortes nas universidades federais somam R$ 121 milhões em SC
-
Coberturas internacionais2 anos ago
Deutsche Welle: Brasiliens neuer Präsident Lula da Silva: Totgeglaubte leben länger
-
Coberturas2 anos ago
Eleições: as cidades que votaram no PT e em Bolsonaro ao mesmo tempo
-
Portfólio6 anos ago
Tamarindo de Blumenau entre a vida e a morte
-
Coberturas2 anos ago
Covid-19: No auge da pandemia, governo retrocede na transparência dos dados
-
Academia5 anos ago
Projeto de jornalismo de dados é apresentado em Berlim
-
Academia1 ano ago
Temperatura da Informação: Quente ou Frio? Obsoleto ou Revertido? Uma Leitura do Jornal de Santa Catarina sob a Ótica das Teorias de Marshall McLuhan
-
Artigos6 anos ago
NSC premia profissionais e projetos de Jornalismo que tiveram destaque em 2018